Chovia muito! Mas chovia muito mesmo! Mas o pior não era a chuva, o pior era estar em Curitiba, uma cidade cheia de curitibanos e, muitos deles, na hora da chuva estavam dirigindo seus carros pelas ruas. A junção de curitibanos com chuva foi uma de suas primeiras experiências de terror.

Uma aflição subia de seu peito, esquentando seu rosto e amortecendo os braços. Os dedos da mão formigavam, os lábios tremiam e o coração não disparava, mas batia tão forte que parecia que ia sair pela boca. Enquanto isso, preocupado com a visibilidade, o limpador de parabrisa trabalhava neuroticamente tentando buscar a água que já havia escorrido. O vidro embaçava devagar e continuamente, debaixo para cima, como se estivesse avisando que tomaria conta de tudo. Os curitibanos, em seus carros, se amontoavam, como se os carros fossem cotovelos em busca de espaço no ônibus lotado.

Quando o meio-fio começou a alagar ela já não tinha mais firmeza nas pernas e os pedais do carro não queriam mais saber de obedece-las, cambaleantes que estavam. Sentia-se tonta e não lembrava aonde deveria ir, nem como chegar lá. Pensou em vomitar ou em acordar, mas não conseguia. Tinha a sensação horrível de não ser um pesadelo, principalmente depois que as buzinas dos carros-cotovelos dos curitibanos começaram a conversar com ela. “Burra!”, “incompetente!”, “inútil!”, diziam elas, ou pareciam dizer… Carros-cotovelos em ônibus lotados praticando pequenos furtos.

Não houve acerto. O trânsito parou e a água continuou a subir. A sua direita, ela podia ver o que parecia ser a rodoviária, sabia que a enorme cobra marrom cor de barro, que corria furiosa em direção da fábrica de fósforos, era na verdade um rio. Um rio que subia. Subia rápido. Que vontade de subir o viaduto de ré e ficar protegida de tudo que viria… Lá em cima a cobra marrom não chegaria… Apenas os curitibanos em seus carros-cotovelos poderiam chegar lá.

Os curitibanos tinham se acumulado de tal forma que ela parecia cercada. Ela via, por detrás do vidro embaçado, os limpadores de parabrisa dos carros-cotovelos a sua volta batalhando contra a chuva, frenéticos, esganifados, compulsivos. Sua agonia aumentava, sentia-se sufocada, estava difícil respirar, os vidros fechados, embaçados, a mão consegue girar o botão. O ventilador grita empurrando ar para dentro de seu carro-cotovelo-claustrofóbico. Não seria bom morrer no meio de curitibanos com seus carros-cotovelos.

A luz da rua apaga, os sinaleiros pifam e o que já era difícil vira um desalento. Carros-cotovelos recheados de curitibanos enlouquecidos e desenfreados por falta de sinaleiros (eles sentem-se livres sem seus guias de para orientação de esquinas).

Quando teve a idéia de ligar o rádio do carro-cotovelo-claustrofóbico, já sentia tonturas e suaves momentos de escuridão. As piscadas pareciam durar mais do que deviam. Sentia-se morrendo, agonizante, sozinha, entre curitibanos. Colocou um cd animado (que morresse ouvindo uma música feliz), tentou cantar junto:

“Quero ver quem segura essa barra

Até a hora que eu voltar

Vou sair pra preencher um vazio no peito

Tô meio sem jeito de falar

Quero ver se eu cair agora

Quem é que vai me levantar

Já pedi ao sol,

Já pedi ao mar

Já pedi à lua

Às estrelas do céu já pedi

Quase tudo que consegui

Eu ganhei da rua

Deixo na mão de quem quiser…”

Um breve pensamento sobre o ridículo dessa situação arranca um sorriso do canto de seu lábio. Morrendo de pânico, na beira do rio da rodoviária, cercada de carros-cotovelos recheados de curitibanos, num carro-cotovelo-claustrofóbico, arfante e embaçado e, pra fazer tudo parecer ridículo, como se seu pânico fosse de plástico ou feito na china, o cd é de forró e… pirata.

Lembra-se rapidamente das caminhadas na Ilha do Mel. A zabumba corrige a batida do coração, o triangulo ajusta a respiração. A sanfona, safada, transforma a moleza das pernas em um suave arrepio. E, por trás da Mariano Torres, como que debochando das coincidências da vida, um brecha de azul do céu surge.

Ela se sente mais ridícula e inútil do que nunca, uma depressão toma conta de seu espírito…salva pelo forró.

Abriu a janela do carro-cotovelo-clautrofóbico-forrozeiro e mandou a chuva a PUTA QUE O PARIU!