Certo dia, num fim de dia de muito sol, daqueles que o céu fica bem vermelho, eu fui ajudar uma senhora a atravessar uma rua perto de casa. Ela não tinha nada de diferente de todas as senhoras de idade que conheci, inclusive, minhas avós. Achei estranho, unicamente, o fato de não querer de forma alguma que eu ajudasse com uma grande sacola que carregava. Insisti em ser gentil (fazer gentilezas pela metade não é do meu perfil) e fui segurando a sacola junto com ela, tentando pelo menos dividir o esforço, mas ela começou a ficar aflita e, mais que apressada, atravessou a rua, subindo na calçada engatada no meu braço, mas logo se desvencilhando.
Fiquei curioso, na verdade, fiquei até um pouco irritado com a Vovó que tentou limitar minha liberdade de ser gentil. Mas, gentilmente, me despedi, e quando estava já a alguns metros, ouvi uns gemidos e o barulho da sacola cair no chão. Virei-me e pude assisti-la, sem forças no braço, tentando erguer a sacola. Caminhei até ela, segurei a sacola por baixo e, quando já estava ficando de pé, ela segurou nos meus braços. Quase furiosa, começou a bradar para que eu largasse a dita sacola. O tempo que fiquei com a sacola nos braços foi o suficiente para perceber o peso da sacola.
A curiosidade que já rodeava por meu pensamento ficou assanhada e, com muita delicadeza, coloquei a sacola no chão. Enquanto pedi desculpas e arranjava um jeito de convencê-la a me deixar ajudar, suavemente afastando suavemente as alças da sacola. Nervosíssima, ela me empurrou e começou a gritar. Alguns pedreiros que já observavam a cena de cima de um muro desceram e vieram averiguar. Com medo da surra me esperava, me afastei e fui conversar com eles. Rapidamente eles perceberam que ela não agüentaria com o peso da sacola e eu me safei da surra.
Os cinco reunidos começamos a tentar convencê-la que deixasse alguém ajudar. Mas ela, cada vez mais arredia, afastavasse puxando a sacola, arrastando-a no chão e gritando para que saíssemos de perto.
Percebi que a curiosidade que havia me aplacado minutos antes, começava a dar comichão nos brutamontes. Comecei a temer pela saúde mental da senhora, mas não desisti, agora era questão de honra saber o que havia na maldita sacola.
A insistência dos pedreiros e certa falta de gentileza nos seus tratos fizeram com que a velhinha começasse a chorar. Nervosa ela chorava e gritava para que a deixássemos em paz. Aproximei-me devagar e tirei a sacola das mãos dela, abri a sacola, mas ela tinha um zipper fechado, não consegui ver o que tinha dentro. Então passei a sacola para minhas costas e pedi a um dos rapazes que pegasse um banquinho e água. Ela se apoiou em mim e no muro, parecia que, enfim, estava desistindo. Esperando o banquinho começou a praguejar algumas coisas que eu não conseguia entender, olhava para o chão batia o pé e praguejava.
Quando banquinho chegou, a noite já começava a baixar e os pedreiros começaram a se recolher. Comecei a conversar com ela. Inicialmente explicando que não era ladrão e que queria ajudar. Mas ela continuava praguejando de cabeça baixa. Eu estava começando a ficar irritado. Velha maluca.
Avisei em tom irritado que, enquanto ela não me deixasse ajudá-la a chegar em sua casa, eu ficaria ali. Ela riu ironicamente e sacudiu a cabeça negativamente. Percebia facilmente sua raiva. Ela continuou praguejando, mas, sem tirar a sacola do chão, me passou as alças.
Levantei a sacola, ela se segurou nos meus braços, levantando-se e, assim começamos nossa lenta caminhada rua acima. Ela morava na última casa da rua. Última, não no sentido da esquina, mas no sentido de ser a última casa ainda de pé na rua, todos as outras construções eram enorme prédios. A casa era muito sombreada pelos prédios e, no lugar de gramado tinha uma terra preta e compacta, com algumas árvores velhas e muito feias. A casa estava mal pintada e com grandes paredes mofadas, janelas sujas e portas arranhadas.
Meu preconceito me deixou pensar que era mais uma das velhinhas abandonadas de Curitiba, mas entrando na casa, tudo era um capricho, antigo, mas muito limpo, cheiro e organizado. A cozinha era muito bonita e ainda tinha um velho forno a lenha, invejável. Deixei a sacola em cima da pia. Sem me olhar ela pegou uma xícara, colocou sobre a mesa da cozinha e disse para eu esperar que ela logo passaria o café. E retirou-se da cozinha me deixando sozinho com a maldita sacola.
Levantei, mas antes que eu pudesse chegar até a sacola, o silêncio me permitiu ouvir uma respiração arfada, próxima de mim. Comecei a procurar aonde estaria o cachorro, responsável pelo barulho. Quanto mais me aproximava da sacola, mais claro ficava o barulho.
Assustado e curioso, percebendo que a minha volta não havia nenhum cachorro, rapidamente abri a sacola. Dentro dela não me lembro o que tinha, o susto foi tão grande que não dei importância para o conteúdo da sacola. Um enorme rottweiler entrou na cozinha, por uma portinhola um pouco a esquerda da cozinha.
Corri para fora para a sala, fechando a porta da cozinha, os latidos do animal tremiam a porta e a minha alma.
A senhora veio o mais rápido que pode, me olhou enfurecida e entrou na cozinha, acalmou o leão e voltou, fechando a porta atrás de si. Olhou no meus olhos e disse, algo que não consegui entender, pareci russo ou polonês. E apontou a direção da porta da rua.
Resignado, eu sai. Havia transformado minha sede de gentileza em um fim de dia angustiante. Dirigi-me para casa a passos largos, as noites escuras não são mais seguras. Chegando em casa pude perceber que a senhora morava a poucos metros do meu prédio e eu nunca havia sequer reparado naquela casa. Daquele dia em diante, cada vez que subia minha rua, reparava cuidadosamente na casa dela.
Depois de alguns dias, me dei conta de não ver mais o rottweiler. Também, reparei que não a via mais. Nesse dia, passei no mercado e comprei três romãs (minha avó adora romã), cheguei em frente a casa e toquei a campainha. Alguém espiou pela janela e, uma menina de uns seis anos pareceu, perguntei sobre a sua avó. Ela respondeu que não tinha mais avó. E que morava sozinha com a mão e uma tia (antes que você pergunte, a tia era irmã da mãe).
A mãe da menina logo apareceu, e eu repeti as perguntas para a moça, explicando os acontecidos de dias antes. Ela riu, disse que eu era louco, mas aceitou as romãs e me convidou a entrar. Apesar de o quintal ser o mesmo, de terra preta e árvores velhas e feias, o interior da casa era diferente, inclusive na disposição dos cômodos. A única coisa que permanecia intacta era a conzinha e o forno.
Acho que a moça ficou impressionada com minha surpresa, pois parou de fazer piadas sobre minha sanidade. Disse que ia passar um café e me pediu para sentar junto a mesa da cozinha, ela se retirou, seguida pela menina. Comecei a averiguar a cozinha com mais calma e, percebi sobre a cuba da pia repousava uma sacola idêntica a da senhora.
Levantei-me, mas antes que eu pudesse chegar até a sacola, o silêncio me permitiu ouvir uma respiração arfada, próxima de mim. Comecei a procurar aonde estaria o cachorro, responsável pelo barulho. Quanto mais me aproximava da sacola, mais claro ficava o barulho…